Único desenhista japonês a alcançar o título de “mangá no kamisama” (lit. “deus dos quadrinhos”), Osamu Tezuka é um divisor de águas em duas mídias distintas: nos quadrinhos e na animação. Úníco a ter conseguido equilibrar com sucesso o compromisso comercial com a produção artística em ambas as áreas, Tezuka foi uma criança que foi educada sob o regime militarista, viu colegas partirem e morrerem na Guerra e sua juventude coincidiu com a derrota, a rendição e a fase de reconstrução do Japão. Atraído pelos filmes de Chaplin e pelos desenhos animados de Disney, Tezuka começou a desenhar ainda criança, com a ambição de se tornar animador. Em 1947, ele entrou na Faculdade de Medicina de Osaka e ao mesmo iniciou uma carreira de desenhista de mangá, uma vez que os estudos e as limitações materiais e financeiras não lhe permitiam se tornar animador. Apesar de ter se formado como médico em 1952, ele decidiu continuar sua carreira de desenhista. Ainda em 1947, ele lançou sua primeira obra em mangá, “Shin Takarajima” (lit. “A Nova Ilha do Tesouro”), que se tornou um dos maiores sucessos editoriais da época, vendendo espantosas 500 mil cópias. “Shin Takarajima” é, curiosamente, um “storyboard” de animação com balões de falas e onomatopéias, e conta a história estilo filme de ação de um valente menino em busca de uma ilha que guarda um grande segredo. Com esse trabalho, Tezuka iniciou sem querer uma revolução nos quadrinhos japoneses, quando o que ele na verdade desejava era apenas contar uma história em animação. Sua frustração em não poder realizar o desenho animado reverteu positivamente, trazendo ao mangá técnicas copiadas do cinema, ainda hoje muito utilizadas por todos os desenhistas. Em 1959, já consagrado como desenhista de mangá e famoso por séries como “Tetsuwan Atomu” (ing. “Atom Boy”), “Jungle Taitei” (port. “Kimba, o Leão Branco”) e “Ribon no Kishi” (port “A Princesa e o Cavaleiro”), Tezuka finalmente conseguiu sua chance na animação, sendo contratado pela Toei para co-dirigir e fazer o roteiro de “Saiyuki” (port. “Alakazam, o Grande”), longa-metragem para cinema sobre as aventuras de um macaquinho com poderes mágicos que ajuda um príncipe a voltar a seu trono, baseado em um conto chinês. Essa experiência encorajou Tezuka a fundar seu próprio estúdio, a Mushi Production, em 1961. No início dos anos 60, a televisão estava se popularizando nos lares japoneses e Tezuka vislumbrou um mercado ilimitado para animação em larga escala, mas para tornar seu projeto viável decidiu praticar o conceito de “limited animation”, fazendo o mínimo de desenhos possíveis por segundo. A primeira série em animê na TV japonesa foi “Manga Calendar”, realizada pela Otogi Production em 1962, empresa criada em 1955 por Ryuichi Yokoyama, que durante a Guerra participou da produção de “Fukuchan no Sensuikan”. Entretanto, poucos capítulos foram produzidos e irregularmente levados ao ar. No ano seguinte, em 1963, Tezuka lançou na TV a série “Tetsuwan Atomu”, baseado na série criada por ele mesmo em mangá. Produzida e exibida em episódios semanais por três anos, “Tetsuwan Atomu” foi patrocinada e alcançou bons índices de audiência e, devido a sua regularidade, foi considerada a primeira série de animê de fato da TV japonesa. 1963 foi, aliás, o ano em que a indústria de animação para TV japonesa efetivamente se iniciou. Além de “Tetsuwan Atomu”, outras cinco séries estreiaram e foram exibidas regularmente: “Ginga Shõnen Tai” (ing. “Space Patrol”), série filmada em “stop-motion” com bonecos feita pela Mushi Production; “Ookami Shõnen Ken” (lit. “Ken, o Menino-Lobo”) da Toei Animation; “Eitoman” (port. “O Oitavo Homem”), “Tetsujin 28 Go” (port. “Homem de Aço”) e “Sennin Buraku” (lit. “O Bairro dos Mestres”), todos da produtora Eiken. Observe-se que até hoje, no Brasil, nunca houve cinco séries de animação nacionais no ar na TV no mesmo ano. Em 1964, ao firmar um contrato com a rede de TV norte-americana NBC, Tezuka tornou-se também o primeiro produtor de séries a exportar animês. Rebatizada de “Atom Boy”, “Tetsuwan Atomu” foi ao ar naquele mesmo ano nos Estados Unidos. Logo, outros estúdios japoneses fariam o mesmo com suas séries, exportando principalmente para redes de TV européias. Em 1965, Tezuka lança na TV a primeira série de animê em cores, “Jungle Taitei” (port. “Kimba, o Leão Branco”), versão animada de uma série criada por ele em mangá em 1950, sobre as aventuras de um filhote de leão das savanas africanas, cujo pai, rei dos animais, morre ao salvá-lo, e que agora, com a ajuda de outros animais, vai aos poucos ganhando maturidade, lutando contra caçadores desonestos e resolvendo desentendimentos entre diferentes espécies, preparando-se para se tornar rei dos animais, assim como seus ancestrais. Tendo sido exibida nos Estados Unidos com o título de “Kimba, the White Lion”, esta série criada originalmente por Tezuka é centro de uma controvérsia, na qual os Estúdios Disney são acusados de plágio, por terem lançado “O Rei Leão” como sendo de criação original do estúdio americano. Na área de longa-metragens, Tezuka inovaria ao produzir animês para cinema, direcionados ao público adulto, com temas complexos e conteúdo erótico, como “Senya Ichiya Monogatari” (port. “As Mil e Uma Noites”) em 1969 e o caricato mas histórico “Cleopatra” em 1970. Um de seus temas prediletos, o ciclo de nascimento, vida, morte e reencarnação, além de uma grande preocupação com a ecologia e a relação humanidade-tecnologia, foram objeto de “Hi no Tori” (port “Fênix”) de 1979 e de “Hi no Tori 2772 - Ai no Kosumozoon” (port. “Fênix 2772: A Cosmozona do Amor”) de 1980. A vastíssima obra de Tezuka, que inclui milhares de personagens criados para centenas de títulos só na área de quadrinhos, é também enorme na área de animação, onde fez outras dezenas de séries, longas, curtas e experimentais. Sua história, entretanto, não é formada apenas de sucessos. Em 1973, sua produtora, Mushi Production, faliu. Endividado, Tezuka reergueu-se dedicando-se integralmente ao mangá, só voltando a fazer animação em 1977 e posteriormente abrindo outra empresa, a Tezuka Production, que existe até hoje. Sua morte prematura em 1989 aos 62 anos (num país cuja expectativa de vida masculina ultrapassa os 75 anos), ainda produzindo, desenhando e desfrutando da consagração, levou o Japão ao luto. É difícil dimensionar ainda hoje o grau do impacto que Tezuka e sua obra causaram na cultura japonesa do pós-guerra. A animação no Japão evoluiu em técnica e forma desde então, mas na essência nada de novo criou-se que não tivesse sido antes feito por ele. Questões éticas entre robótica e humanidade, terror para crianças e desenhos eróticos para adultos, a androginia, dramas de vida e morte em histórias aparentemente ingênuas e cômicas - tudo o que hoje caracteriza o animê na aparência e no conteúdo foi antes testado pelo visionário Tezuka. Apelidado de “deus do mangá”, sua imortalidade é garantida pelas obras que ele criou em vida, pelo estúdio que leva seu nome, por um museu e um parque temático no Japão e pelos animadores que o sucederam, que conscientemente ou não, seguem a trilha por ele deixada. Da década de 60 para cá, vários estúdios e produtoras foram criados e a quantidade de variedade de séries de TV multiplicaram-se numa velocidade tal, que publicações especializadas foram criadas para permitir que o público pudesse acompanhar o que estava indo ao ar.
sexta-feira, 2 de julho de 2010
Vossa magestade, Osamu Tezuka.
Único desenhista japonês a alcançar o título de “mangá no kamisama” (lit. “deus dos quadrinhos”), Osamu Tezuka é um divisor de águas em duas mídias distintas: nos quadrinhos e na animação. Úníco a ter conseguido equilibrar com sucesso o compromisso comercial com a produção artística em ambas as áreas, Tezuka foi uma criança que foi educada sob o regime militarista, viu colegas partirem e morrerem na Guerra e sua juventude coincidiu com a derrota, a rendição e a fase de reconstrução do Japão. Atraído pelos filmes de Chaplin e pelos desenhos animados de Disney, Tezuka começou a desenhar ainda criança, com a ambição de se tornar animador. Em 1947, ele entrou na Faculdade de Medicina de Osaka e ao mesmo iniciou uma carreira de desenhista de mangá, uma vez que os estudos e as limitações materiais e financeiras não lhe permitiam se tornar animador. Apesar de ter se formado como médico em 1952, ele decidiu continuar sua carreira de desenhista. Ainda em 1947, ele lançou sua primeira obra em mangá, “Shin Takarajima” (lit. “A Nova Ilha do Tesouro”), que se tornou um dos maiores sucessos editoriais da época, vendendo espantosas 500 mil cópias. “Shin Takarajima” é, curiosamente, um “storyboard” de animação com balões de falas e onomatopéias, e conta a história estilo filme de ação de um valente menino em busca de uma ilha que guarda um grande segredo. Com esse trabalho, Tezuka iniciou sem querer uma revolução nos quadrinhos japoneses, quando o que ele na verdade desejava era apenas contar uma história em animação. Sua frustração em não poder realizar o desenho animado reverteu positivamente, trazendo ao mangá técnicas copiadas do cinema, ainda hoje muito utilizadas por todos os desenhistas. Em 1959, já consagrado como desenhista de mangá e famoso por séries como “Tetsuwan Atomu” (ing. “Atom Boy”), “Jungle Taitei” (port. “Kimba, o Leão Branco”) e “Ribon no Kishi” (port “A Princesa e o Cavaleiro”), Tezuka finalmente conseguiu sua chance na animação, sendo contratado pela Toei para co-dirigir e fazer o roteiro de “Saiyuki” (port. “Alakazam, o Grande”), longa-metragem para cinema sobre as aventuras de um macaquinho com poderes mágicos que ajuda um príncipe a voltar a seu trono, baseado em um conto chinês. Essa experiência encorajou Tezuka a fundar seu próprio estúdio, a Mushi Production, em 1961. No início dos anos 60, a televisão estava se popularizando nos lares japoneses e Tezuka vislumbrou um mercado ilimitado para animação em larga escala, mas para tornar seu projeto viável decidiu praticar o conceito de “limited animation”, fazendo o mínimo de desenhos possíveis por segundo. A primeira série em animê na TV japonesa foi “Manga Calendar”, realizada pela Otogi Production em 1962, empresa criada em 1955 por Ryuichi Yokoyama, que durante a Guerra participou da produção de “Fukuchan no Sensuikan”. Entretanto, poucos capítulos foram produzidos e irregularmente levados ao ar. No ano seguinte, em 1963, Tezuka lançou na TV a série “Tetsuwan Atomu”, baseado na série criada por ele mesmo em mangá. Produzida e exibida em episódios semanais por três anos, “Tetsuwan Atomu” foi patrocinada e alcançou bons índices de audiência e, devido a sua regularidade, foi considerada a primeira série de animê de fato da TV japonesa. 1963 foi, aliás, o ano em que a indústria de animação para TV japonesa efetivamente se iniciou. Além de “Tetsuwan Atomu”, outras cinco séries estreiaram e foram exibidas regularmente: “Ginga Shõnen Tai” (ing. “Space Patrol”), série filmada em “stop-motion” com bonecos feita pela Mushi Production; “Ookami Shõnen Ken” (lit. “Ken, o Menino-Lobo”) da Toei Animation; “Eitoman” (port. “O Oitavo Homem”), “Tetsujin 28 Go” (port. “Homem de Aço”) e “Sennin Buraku” (lit. “O Bairro dos Mestres”), todos da produtora Eiken. Observe-se que até hoje, no Brasil, nunca houve cinco séries de animação nacionais no ar na TV no mesmo ano. Em 1964, ao firmar um contrato com a rede de TV norte-americana NBC, Tezuka tornou-se também o primeiro produtor de séries a exportar animês. Rebatizada de “Atom Boy”, “Tetsuwan Atomu” foi ao ar naquele mesmo ano nos Estados Unidos. Logo, outros estúdios japoneses fariam o mesmo com suas séries, exportando principalmente para redes de TV européias. Em 1965, Tezuka lança na TV a primeira série de animê em cores, “Jungle Taitei” (port. “Kimba, o Leão Branco”), versão animada de uma série criada por ele em mangá em 1950, sobre as aventuras de um filhote de leão das savanas africanas, cujo pai, rei dos animais, morre ao salvá-lo, e que agora, com a ajuda de outros animais, vai aos poucos ganhando maturidade, lutando contra caçadores desonestos e resolvendo desentendimentos entre diferentes espécies, preparando-se para se tornar rei dos animais, assim como seus ancestrais. Tendo sido exibida nos Estados Unidos com o título de “Kimba, the White Lion”, esta série criada originalmente por Tezuka é centro de uma controvérsia, na qual os Estúdios Disney são acusados de plágio, por terem lançado “O Rei Leão” como sendo de criação original do estúdio americano. Na área de longa-metragens, Tezuka inovaria ao produzir animês para cinema, direcionados ao público adulto, com temas complexos e conteúdo erótico, como “Senya Ichiya Monogatari” (port. “As Mil e Uma Noites”) em 1969 e o caricato mas histórico “Cleopatra” em 1970. Um de seus temas prediletos, o ciclo de nascimento, vida, morte e reencarnação, além de uma grande preocupação com a ecologia e a relação humanidade-tecnologia, foram objeto de “Hi no Tori” (port “Fênix”) de 1979 e de “Hi no Tori 2772 - Ai no Kosumozoon” (port. “Fênix 2772: A Cosmozona do Amor”) de 1980. A vastíssima obra de Tezuka, que inclui milhares de personagens criados para centenas de títulos só na área de quadrinhos, é também enorme na área de animação, onde fez outras dezenas de séries, longas, curtas e experimentais. Sua história, entretanto, não é formada apenas de sucessos. Em 1973, sua produtora, Mushi Production, faliu. Endividado, Tezuka reergueu-se dedicando-se integralmente ao mangá, só voltando a fazer animação em 1977 e posteriormente abrindo outra empresa, a Tezuka Production, que existe até hoje. Sua morte prematura em 1989 aos 62 anos (num país cuja expectativa de vida masculina ultrapassa os 75 anos), ainda produzindo, desenhando e desfrutando da consagração, levou o Japão ao luto. É difícil dimensionar ainda hoje o grau do impacto que Tezuka e sua obra causaram na cultura japonesa do pós-guerra. A animação no Japão evoluiu em técnica e forma desde então, mas na essência nada de novo criou-se que não tivesse sido antes feito por ele. Questões éticas entre robótica e humanidade, terror para crianças e desenhos eróticos para adultos, a androginia, dramas de vida e morte em histórias aparentemente ingênuas e cômicas - tudo o que hoje caracteriza o animê na aparência e no conteúdo foi antes testado pelo visionário Tezuka. Apelidado de “deus do mangá”, sua imortalidade é garantida pelas obras que ele criou em vida, pelo estúdio que leva seu nome, por um museu e um parque temático no Japão e pelos animadores que o sucederam, que conscientemente ou não, seguem a trilha por ele deixada. Da década de 60 para cá, vários estúdios e produtoras foram criados e a quantidade de variedade de séries de TV multiplicaram-se numa velocidade tal, que publicações especializadas foram criadas para permitir que o público pudesse acompanhar o que estava indo ao ar.
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